sábado, 30 de abril de 2011

Síndrome da Flexibilização de Valores



Tudo começou com uma simples observação: ou eu o tempo estava me deixando ainda mais careta, old, quadrada, ou a juventude estava flexibilizando cada vez mais os valores e conceitos. Percebi um conjunto de sinais apresentados pelos jovens que me induziriam a acreditar na segunda hipótese:

Redução de satisfações à sociedade
Priorizar questões individuais
Relativização dos julgamentos (certo ou errado)
Grande elevação no número de relacionamentos “abertos”
Pouca importância com os conflitos do outro
Diminuição do apego
Comportamentos frios e superficiais
Maior importância para os fins do que para os meios
Dificuldade com a estabilidade
Influenciáveis
Relações instantâneas, intensas e descartáveis
Facilidade de se reconfigurar


Síndrome é o conjunto de sintomas e sinais que definem uma mesma patologia. A flexibilização de valores é a conseqüência mais visível para a acumulação de todos os sintomas acima apontados: os valores não são mais estanques, ajustados, definidos em si mesmos; eles são fluidos, misturados e relativizados. Mês passado aquela dúvida que citei no início deixou de existir: a síndrome da flexibilização de valores é real. Sabe o pior? Não é privativo dos jovens, mas sim da sociedade.


Hoje somos engolidos pelo sistema: trabalhamos muito para consumir aquilo que nos fazem acreditar que é uma necessidade. A mudança é constante. O tempo e o espaço foram reduzidos com a velocidade da internet e da comunicação on-line. A adaptação, que sempre foi marca da evolução da espécie, passou a ser exigida cada vez mais devido às inúmeras e intensas mudanças. Estamos imersos e regulados por aquilo que Max Weber conceituou como racionalidade instrumental. Entende-se por esta razão aquela cuja “ação que se baseia no cálculo, na adequação de meios e fins, procurando obter com um mínimo de dispêndios um máximo de efeitos desejados, evitando-se ou minimizando-se todos os efeitos colaterais indesejados.” (FREITAG, 1994, p.90). Diante disso percebemos que a grande conseqüência dessa racionalidade instrumental aliada à redução do tempo e espaço do mundo moderno foi a perda da autonomia do indivíduo. O que isso quer dizer? Que os indivíduos passaram a ser comandados pelo sistema em toda sua inteireza. Ingenuidade acreditar que a razão instrumental regularia apenas as relações trabalhistas: ela se expande para as relações sociais.

“Você viu como a nossa arma estava afiadinha? Você viu o estrago que ela fez?” Essa foi a constatação de um dos suspeitos de ter vendido a arma utilizada por Wellington Menezes de Oliveira, responsável pelo massacre na Escola Municipal Tasso da Silveira, no Rio de Janeiro. O cenário de dor e sofrimento foi irrelevante diante da eficácia do produto vendido pelo sujeito. Essa razão que norteia essa criatura é a mesma que explica as corrupções, assassinatos, além de pequenos atos de um cidadão tido como comum. Não quero dizer que qualquer cidadão seria capaz de emitir esse comentário, o quero expor é que esse pensamento é resultado da falta de autonomia a qual falei anteriormente.

A constante mudança, intensa rapidez com que as informações, padrões, sistemas e processos são reformulados, substituídos, descartados e reconstruídos permite o afrouxamento de algumas estruturas do indivíduo. Zigmunt Bauman utilizou em seu livro Modernidade Líquida a metáfora da “fluidez” ou “liquidez” para caracterizar a contemporaneidade. É justamente essa fluidez que permite a reorganização das moléculas para a adequação ao espaço a ser ocupado.

Antigamente poderíamos caracterizar a sociedade como resistente, onde o sagrado era evidenciado, havia maior valorização do passado, das crenças e das tradições. As mudanças sempre estiveram presentes e demandavam a adaptabilidade e transformação do indivíduo, porém como a sua constituição era sólida, essa transformação constituía-se em lapidações, na qual se preservava a essência indivíduo, sendo impossível acoplar um quadrado num espaço circular. As mudanças continuaram e nesse contexto, os primeiros sólidos começaram a se derreter para permitir uma melhor adaptação. Bauman continua seus estudos constatando que a modernidade fluida repercutiu numa grande alteração na condição humana com tendência de desenvolvimento nos conceitos básicos da emancipação, individualidade, tempo/espaço, trabalho e a comunidade. O tempo e o espaço são extremamente reduzidos. A modernidade concentra esforços para alcançar rapidamente um objetivo que se distancia cada vez que se aproxima. O homem moderno é aquele cuja estagnação é impensável. Nas organizações, nos deparamos com a geração Y, folgados, distraídos, superficiais e insubordinados. Não “vestem a camisa da empresa”, pois não tem compromisso de fidelidade e lealdade a ela – “vou para quem me der mais”. É necessário estar sempre à frente, o que inviabiliza uma construção sólida para sustentar todas essas contínuas e repentinas transformações. A identidade é desprezada, pois não existe identidade essencial na liquidez: a “identidade” na liquidez depende do ambiente. Qual o reflexo dessa instabilidade da modernidade na construção do indivíduo? A instabilidade do próprio indivíduo.

Como posso manter a integridade dos valores numa modernidade líquida? Além disso, como posso construir valores, conceitos e até mesmo uma identidade num tempo de fluidez da sociedade? Se a construção do indivíduo está sendo afetada com essa mudança social, imagina as relações sociais: descomprometidas, desacreditadas, descredibilizadas. A frieza e desumanidade da frase emitida pelo suspeito de vender a arma para o assassino do Realengo reflete seu descompromisso e insensibilidade com o coletivo. O que podemos fazer para evitar a síndrome de flexibilização de valores decorrente da racionalidade instrumental? Discussão para o próximo post.




FREITAG, Bárbara. A teoria crítica: ontem e hoje, São Paulo: Brasiliense, 1994


BAUMAN, Zigmunt. Modernidade Líquida. São Paulo: Zahar, 2001.