quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Conto I

- Pai, por que você tem que voltar pra casa?
- Já está na minha hora e já brincamos demais. Além disso você pode pegar um resfriado.
- Não acho que brincamos demais. Queria ter mais tempo com você. E o que tem se eu pegar um resfriado? Não quero perder essa oportunidade de passar mais um tempo com o senhor por causa de um resfriado que nem sei se vai acontecer.
- Meu filho. Sinto muitas saudades de você, mas existem coisas na vida que só compreendemos depois dela. É claro que não gostaria de me afastar de vocês, mas todos nós temos a nossa hora. Se pensarmos bem, não fomos tão penalizados, já que ainda podemos nos ver, não é verdade?
- Mas não quando eu quero. Sempre depende de sua vontade. Outro dia, pai, eu chorei muito numa discussão com a mamãe pois ela não queria me deixar sair para a formatura de uma colega. O meu choro não foi por não ter ido, pois nossa discussão me fez compreender que seria um pouco perigoso para mim, mas por não ter alguém para eu compartilhar essa minha angústia. Sei que se você tivesse presente eu teria ido e ela não ficaria tão preocupada. Me senti um injustiçado. Queria muito seu conforto naquela hora e você não apareceu. Por quê?
- Não significa que eu não apareci porque não quis. Aliás, neste momento eu percebi seu sofrimento, mas saiba que é o sofrimento que nos fortalece. Em muitos momentos da sua vida você se sentirá só e é nessas horas que você perceberá o quanto você é forte. Neste dia você chorou muito, mas seus momentos de reflexão permitiram algumas conclusões, dentre elas a de que sua mãe muitas vezes necessita mais da sua proteção do que você da dela. Isso é uma tendência que, com o tempo ficará muito mais nítido.
- Sim, mas eu queria que você me ajudasse... Eu queria a sua presença para me apoiar, me ajudar a conquistar minha independência, me orientar... Às vezes não consigo verbalizar todo esse terremoto dentro de mim, mas tudo isso me deixa muito triste.
- A vida é dura, meu filhinho, mas nem por isso menos bela. Sente-se aqui perto de mim. Temos que aproveitar o que ela tem de melhor a nos oferecer. Você deve aproveitar os beijos de sua mãe, os abraços dos seus avós, as risadas dos seus amigos. Deve crer em Deus, no seu destino e principalmente nas pessoas que gostam de você. Tudo virá no seu tempo: a sua independência, a sua segurança, as respostas para suas dúvidas.
- Pai, confesso que nas minhas rezas diárias nem sempre está presente minha crença no que estou orando. Sabe por quê? Do que adianta pedir pela saúde da minha família se quando for para adoecermos, adoeceremos pela vontade Dele? Tudo é pela vontade Dele e você me disse isso! Então, por que vou crer Nele se foi Ele quem tirou você de mim? Por que vou acreditar na bondade divina se eu perdi o que era mais importante na minha vida?
- Desculpas por repetir o que muita gente já deve ter dito a você, mas a vida é maravilhosa. Se déssemos o valor certo enquanto ainda temos juventude, com certeza as pessoas seriam mais felizes. O problema é que só damos o real valor às coisas ou quando perdemos ou quando já estamos bem velhinhos e aí já é tarde demais. Quero muito, meu filho, que você acredite na vontade Dele. Se você conseguir ter mais fé, terá mais sabedoria para compreender aquilo que nos parece incompreensível. Deus escreve certo por linhas certas, só que precisamos de maturidade para enxergarmos isso. Ele não me tirou da sua vida. Desde quando eu te concebi como filho e você como seu pai nos tornamos uno, inseparáveis. Nosso elo não se quebrou com minha partida e isso não é por causa da sua mediunidade. Mesmo àqueles que não conseguem enxergar espíritos, conseguem se manter próximos dos seus entes que já desincorporaram. E eles se confortam com isso, sabia? No sentimos muito melhor quando vocês se conformam com a nossa partida.
- Pai, nada disso me conforta. Só eu sei o vazio que levo comigo. Só eu sei como eu seria mais feliz se eu pudesse ter meu pai para me levar à escola, para me contar suas histórias, para me ensinar a dirigir, me ensinar a namorar. Só eu sei como me sinto só com essas mudanças no meu corpo, com essa insegurança sobre as meninas... Como posso conversar com a mamãe sobre a Julinha? Como posso dizer que já dei meu primeiro beijo e que tenho outros desejos? Isso tudo me angustia e às vezes me apavora! Por que eu fui alvo dessa injustiça? Eu merecia passar por isso? Eu merecia perder a proteção e o conforto do meu melhor amigo?
- Meu filho. Não duvide da bondade de Deus. Olhe para tudo ao seu redor e se pergunte: de onde vem essa natureza linda? Por que você se sente bem com essa paisagem esplendorosa, um pôr-do-sol no mar calmo dessa tarde de verão? Quem nos daria um mundo tão lindo e perfeito para morar senão alguém de uma bondade infinita?
- Mas pai, muito disso tudo a ciência já explica. Eu sei que a areia que estamos pisando são destroços das pedras, sei por que temos coqueiros ao invés de pinheiros, enfim, se o mundo foi feito para nos fazer bem, foi o acaso que o construiu assim, e não Deus.
- Então você acha que o acaso foi bondoso conosco? O acaso, o a evolução de Darwin, que fez o planeta harmônico, os animais e o homem com detalhes tão perfeitos? É por acaso que você pensa, se move, matem seu corpo em perfeito funcionamento, mesmo sabendo que ele tem tantas peças para darem errado? É o acaso que faz você me ver agora, conversar comigo, que permite dialogarmos de planos diferentes? Não consegue perceber que o que você chama de acaso pode ser visto como a vontade de Deus? Meu filho, com tanta racionalidade, quero que me explique como eu existo para você? Aliás, eu existo?
- Claro que sim. Existe e não é fruto da minha imaginação. Você existe para mim quase da mesma forma de quando ainda era vivo. A diferença é que não posso te ver sempre que quero.
- Então para os outros eu não existo, concorda? Se você contar para sua avó que conversa comigo ela poderá brigar com você e até achar que você está enlouquecendo! Ela estaria certa em afirmar que eu não existo apenas pelo fato de não ver? Estaria certa em desconfiar da sua palavra? Claro que não. Apenas pelo fato de eu não ser matéria, não implica que eu não exista, que eu seja nada. Veja que estou tentando mostrar que devemos crer naquilo que não podemos ver nem explicar. Devemos crer na existência e na bondade de Deus. Ele existe e apesar de não conseguir explicar, conseguimos senti-lo.
- Pai, onde está a bondade de Deus quando ele o tirou de mim? Qual e a parte boa dessa historia da sua partida? Alguém conseguiria ver bondade nas lágrimas da mamãe? No desespero da vovó? Na tristeza imensa do vovô? Não falo só do dia da sua desencarnação, mas até hoje o luto permanece. Nunca esqueceremos aquele domingo ensolarado. Jamais imaginaríamos que aquela saída rotineira para levar frutas para a vovó, às 7 da manha, resultaria naquele acidente. Só de falar eu já me emociono... Nunca mais fomos os mesmos. Onde está a presença de Deus neste momento?

(...)

2 comentários:

  1. Oi,
    Apesar de não ter afinidade nesse campo, eu fiz uma leitura descorrida e fácil do texto, confesso que até me emocionei, pois é menina não é que "os brutos" também se emocionam?
    Dica: Acho que você poderia pensar na hipótese de construir um livro tendo essa estória como base.

    ResponderExcluir
  2. Naggaizita...
    Vou escrever o próximo capítulo ainda essa semana. Mas estou sem fonte de inspiração (ainda bem), pois muitas vezes escrevo quando estou triste...
    Bjs

    ResponderExcluir