Aos poucos fui percebendo que as coisas que dizia eram
incompatíveis com suas atitudes. Não foi fácil. Demorou um pouco para que eu
começasse a desconfiar dessa incoerência. Ele negava suas origens. Apontava os
erros da sua família, sobressaía os defeitos de forma tão agressiva que era
impossível não comprar aquela conversa.
Claro! Pintou o diabo: a mãe era uma louca materialista,
avessa ao amor e favorável à riqueza. O pai um galinha de quinta que abandonou
a família e nunca assumiu ninguém, mas fez outros 6 filhos em mulheres diferentes. Os irmãos continuaram a perpetuar o nome da tradicionalíssima
família ao se casarem com mulheres “novas ricas”, que adicionaram o nome Vilaça
para entrar na hight society e se tornarem nobres de toga. O importante era a
associação do nome a riqueza. Quem iria discordar que essa família estava
desestruturada? Ele enxergava tudo isso e demonstrava sua aversão a essa
estrutura de valores que o cercava. E eu pensava: “que bom que ele é diferente.
Percebe isso tudo na família e quer construir algo melhor para si.” Acho que estava errada.
Não acredito no determinismo sociológico. Acredito que somos
agentes de mudanças. Mas também sei que ficar inerte e “deixar a vida levar” é
algo de uma facilidade extrema. Poucos têm a coragem de reagir. Era muito improvável
ele não ter alguns respingos desse ambiente, afinal ele foi criado nisso! Deve
ter concebido a imagem materna e paterna muito diferente da minha concepção. Dificilmente
teve exemplos de valores de ética, humildade e coletividade na infância. Talvez
na adolescência tenha adquirido a habilidade de abstração necessária para a
elaboração de um pensamento crítico e ter iniciado um possível processo de
ressignificação da sua vida. Mas durante a infância foi tábula rasa imersa em
um ambiente favorável a experiências distorcidas. Impossível ser diferente! E acho
que constatei isso...
Talvez mais difícil do que ser deixada e descobrir que seu
amor não existe. O que você amou foi, na realidade, uma ilusão. Hoje olho para ele
e pergunto: “onde está o meu amor? Não é você...” como pude passar um ano ao
lado de alguém que hoje não reconheço? Que sensação estranha, bizarra! Olhar para
o homem que te beijou todos os dias e descobrir que aquele beijo não provoca
mais nenhuma sensação. Não sinto raiva ou ódio. Às vezes parece pena, mas
também não é. Chega próximo a indiferença, mas existe uma vibração angustiante
que descaracteriza o indiferente. Realmente não sei o que é.
Enfim, chegou a hora. É o momento de termos uma conversa
madura, transparente, definitiva. Preciso dizê-lo que não há mais amor quando não
há mais admiração. Deixei de admirá-lo por enxergá-lo de uma forma muito
diferente do que aquilo que me encantou. Não quero fazê-lo sofrer: preciso ser polida
o suficiente para dizer a minha verdade sem causar dor (nem em mim, nem nele). É
preciso um pouco de coragem...
“Henrique, a minha vida mudou. Estou com novos planos e
novas perspectivas na minha carreira. Deixei o trabalho no hospital para me
dedicar aos estudos para concurso. Essa é uma jornada que preciso caminhar só. Quero
que você entenda que você não tem culpa disso. Eu gosto muito de você. Mas acho
que nesse momento preciso me concentrar para essa mudança. Preciso de tempo e
muita dedicação nos estudos. Não queria ver nossa relação ruir em brigas e
desavenças. Por isso pensei em preservá-la. Deixaremos apenas momentos felizes
em nossa história. Isso talvez seja o suficiente para resgatá-la no futuro. Mais
uma vez conto com seu apoio. Abraços...”
Amar é uma arte ainda incognoscível!
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