sábado, 31 de julho de 2010

Um pouco de Loucura




Contexto histórico

Até o século XV, no início do Renascimento, não havia ainda o internamento (pelo menos como prática instituída e sistematicamente aplicada) do louco. O louco era, a princípio, somente um errante; e sua imagem, figura altamente simbólica, constantemente presente tanto na literatura, quanto nas pinturas.
No Renascimento se assiste ao rompimento dessa relação entre literatura e pintura, tão íntima até o século XV. Por outro lado, a literatura e a filosofia dão à loucura um papel privilegiado de sátira moral. O novo tratamento moral atribuído ao louco, retirando dela seu caráter e significado trágico e cósmico.Diante desses fatos é que nasce a percepção clássica da loucura marcada pela supremacia da consciência crítica sobre a experiência trágica da loucura. É o momento em que a loucura é apreendida e torna-se um fato discutido.
Outro acontecimento que marcou a percepção clássica da loucura foi a fundação do Hospital Geral em 1656, em Paris. No primeiro momento da fundação do Hospital Geral, a loucura, é tomada como um dos aspectos da desrazão, tem o significado preciso de imoralidade. O Hospital Geral organiza na medida em que reúne em seu espaço de reclusão os personagens que constituem o objeto da percepção clássica que é a desrazão: o pobre, o vagabundo, o imoral, o blasfemo, e também o louco. São todos múltiplos personagens da desrazão, e por isso são imorais.
No século XVII os hospícios podiam ser considerados casas de internamento, onde não havia tratamento servindo apenas como medida de precaução ou um lugar de depósito, auxílio e punição. Philippe Pinel foi considerado um reformador, pois em 1793 promove o nascimento da clínica, onde oferece para os doentes um tratamento moral. No Brasil, esta realidade aparece um pouco mais tarde.
A doença mental do século XIX era descrita segundo os critérios franceses, que enfatizava seu caráter moral. Nesse sentido, a alienação era considerada uma desordem de comportamento. O doente deveria ser afastado das causas de sua loucura. Por isso, ficava isolado da família e excluído da vida social. Tal princípio foi o que guiou a construção de hospícios no Brasil.
O Estado brasileiro tinha, nesta época, uma forte preocupação com a saúde pública como forma de proteção da nova ordem social. Grandes campanhas para a erradicação de epidemias foram promovidas, e tiveram seus heróis como Oswaldo Cruz e Carlos Chagas. O crescimento urbano caótico também apavorou as autoridades, pois as ruas estavam tomadas de uma maioria miserável, porém necessária para o capitalismo industrial nascente, estava completamente exposta às epidemias, e era preciso garantir que as mazelas dos pobres não transbordassem e contaminassem as elites. Percebe-se claramente o caráter higientista que impregna a atuação psiquiátrica.
Em meados do século XIX (1852) foi criado no Rio de Janeiro o primeiro hospital para doentes mentais no Brasil: o Hospital Dom Pedro II, que marca o nascimento da psiquiatria no Brasil. A prática psiquiátrica brasileira iniciou como um sistema de assistência abrangente por intermédio de Juliano Moreira, médico que introduziu definições da escola de psiquiatria alemã no país. A psiquiatria do século XX deixa de se restringir ao doente mental, para englobar aqueles que apresentam desvios potenciais.
A proposta desta psiquiatria começou a ser revista sob o olhar ético dos direitos humanos. Percebeu-se que a concepção psiquiátrica de tratamento incluía, o sofrimento dos tratamentos e até mesmo a exclusão social do sujeito, podendo o hospital psiquiátrico ser considerado uma prisão sem previsão de saída. Surge então um novo pensamento, sugerindo uma reforma na psiquiatria.
A concepção de psiquiatria higienista foi sendo modificada (que atendia a um projeto de medicalização social, através das prevenções das desordens mentais). Concebendo-se um novo projeto de promoção da saúde, uma abordagem mais preventiva.
A reforma psiquiátrica propõe enquanto modelo não institucional, extra hospitalar a implantação de CAPS. O CAPS é uma fase intermediária entre a internação e o atendimento ambulatorial, sendo equivalente ao antigo hospital-dia. As vantagens são que os pacientes não perdem o contato com a família, já que geralmente ele volta para casa a noite. Mas deve se tomar cuidado para que esse centro de assistência extra-hospitalar não se torne um mero local onde os pacientes passam o tempo, no qual o usuário se torne dependente para o resto da vida.
O fim das instituições manicomiais representa não apenas uma mudança de modelo assistencial psiquiátrico, mas uma mudança na forma de como a sociedade lida com as pessoas portadoras de sofrimento das mais diversas ordens. Esta é uma luta contra a violência a qual são submetidos não apenas os usuários (os portadores de sofrimento psíquico), mas também os técnicos, igualmente vítimas das condições perversas impostas por estas instituições, e enfim, a sociedade como um todo, pois a violência contra os seres humanos é uma violência contra a dignidade humana. A Luta Antimanicomial existe há aproximadamente 20 anos e tem como meta a substituição progressiva dos hospícios, por formas de atenção em saúde mental dignas, que respeitem o direito à liberdade e cidadania das pessoas com transtorno mental.


Teóricos

Lacan escreve uma frase na sala de plantão onde trabalhava; uma frase que se tornaria célebre posteriormente: “Não é louco quem quer”. Ela preconiza a loucura como algo que tem sua lógica própria independente da vontade e do estado de espírito do indivíduo. Falar da psicose no lugar das psicoses ressalta a primeira como uma estrutura clínica que tem um modo particular de articulação do real, simbólico e imaginário.
Freud contribui para o saber da psicose em inúmeros textos. Em “Psiconeuroses de defesa” (1984) ele afirma que existe na psicose uma defesa muito mais enérgica e eficaz que na neurose; Em “Novas observações sobre as psiconeurose de defesa” (1986) Freud discorre sobre a aplicação da classificação dos sintomas da neurose obsessiva à paranóia; Em carta a Fliess (1899) ele fala que a paranóia tem como ponto de fixação no desenvolvimento libidinal o auto-erotismo; Em “Três ensaios sobre a sexualidade” (1905) Freud fala da agressividade e transformação do amor em ódio na paranóia; Em carta a Jung e a Ferenczi (1908) ele levanta a hipótese da relação entre paranóia e homossexualidade; No “Caso Schreber” (1911): ele discorre sobre a tríade: frustração, regressão e fixação. E, finalmente, em “Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranóia” (1911) Freud afirma que o que foi abolido dentro volta do lado de fora, frase esta que Lacan retoma dizendo que o que é foracluído no simbólico retorna no real.
Lacan propõe a foraclusão do Nome-do-Pai como mecanismo específico da psicose. A passagem do sujeito pelo Édipo irá muni-lo de uma armadura significante mínima que condiciona sua entrada no mundo simbólico. Contudo para haver sujeito do inconsciente é preciso que haja linguagem, pois o inconsciente é estruturado como uma linguagem. Logo, os psicóticos não são destituídos de linguagem.
O Édipo será o determinante para o sujeito a estruturação do sujeito como psicótico, caso ocorra a foraclusão do Nome-do-Pai. Sendo este, segundo Quinet (2002) um neologismo que se utiliza um português para designar que não há inclusão, que o significante da lei está fora do circuito, sem deixar, no entanto de existir, pois o que está foracluído do simbólico retorna no real. Desse modo o sujeito não é submetido à castração simbólica, o que impossibilita a sua significação fálica advir, o que o fará se situar numa problemática fora-do-sexo. O Nome-do-Pai permite o sujeito entrar na linguagem, em decorrência da sua não inscrição no psicótico ele poderá apresentar distúrbios da linguagem, alucinações.
O Édipo se divide em três tempos lógicos. No primeiro tempo lógico a criança é identificada como o objeto de desejo da mãe, fazendo-se a igualdade, bebê=falo. Nesta fase a mãe é para a criança um Outro absoluto, sem lei. Deste modo, esta se encontra totalmente vulnerável à mãe e dependente de seus cuidados. Ainda neste primeiro tempo lógico do Édipo há o estádio do espelho o qual é definido por formar uma imagem de unidade da criança com o outro, que é a mãe.
No segundo tempo lógico do Édipo é marcado a entrada da criança no mundo simbólico. Dessa forma a mãe passa de um estatuto de objeto primordial ao de signo. Contudo, este processo de simbolização da mãe necessita de um terceiro que é metaforizado pelo Nome-do-Pai. Quando a intervenção do Nome-do-Pai no Outro, que é a mãe, é bem sucedida a identificação da criança com o falo é destruída ou recalcada. A criança passa da posição de ser o falo para a dialética de ter ou não ter o falo. Essa dialética permitirá o sujeito atribuir significações aos significantes, situar-se na ordem simbólica e situar-se na partilha dos sexos como homem ou mulher. O efeito da castração simbólica aparece no imaginário como falta.
O terceiro tempo lógico do Édipo é marcado pelo declínio do complexo de Édipo. A Inclusão do significante do Nome-do-Pai no Outro marcará a entrada do sujeito na ordem simbólica e a conseqüente inauguração da cadeia do significante no inconsciente.
Como apresenta Quinet (2002), a apresentação de pacientes é contemporânea ao nascimento da psiquiatria, datando ambas do fim do século XIX e do início do séc. XX.
Charcot fez da Salpétrière, nas terças-feiras, palco das apresentações de seus pacientes que eram vistas como um espetáculo, para um o público à qual era permitida a participação. Ele fazia uso de uma clínica da observação, do olhar, sendo a fala do paciente bem vinda unicamente para a demonstração de um saber prévio. Dessa forma a este não era dada a oportunidade de emergir a sua subjetividade. Charcot se dedicou ao estudo da histeria, patologia esta que era a sua especialidade e fez a sua glória.
Freud propõe, como define a sua filha Anna O., o “teatro privado”. Ele possuía um foco para além da visibilidade e do espetáculo do corpo, para o modo de funcionamento do inconsciente. Diferente de Charcot, Freud utilizava-se de uma clínica que favorecia a escuta. E para a construção do saber psicanalítico ele não utilizou a apresentação de pacientes, mas sim os casos clínicos. Contudo como legado de Charcot, ele herdou o interesse no estudo das histéricas e na constituição do saber transmissível, no seu caso a psicanálise, e a proposta de um modo de tratamento.
Lacan institui a apresentação de pacientes associada à psicanálise. Diferente de Charcot, ele realiza a apresentação de um único paciente para um público selecionado. E assim como Freud, Lacan realiza a clínica do sujeito do inconsciente, prezando, desse modo, pela fala. Quinet (2002) resume dizendo que
“a apresentação lacaniana de pacientes é uma experiência que não só implica a transmissão do instrumental psicanalítico permite a apreensão do sujeito do inconsciente, como também serve de orientação diagnóstica, prognostica e terapêutica para a equipe hospitalar que se ocupa do paciente entrevistado”.

A partir do real da clínica a prática da apresentação de paciente implica a inserção entre a psiquiatria e a psicanálise.


Atuação profissional

Ao profissional da saúde cabe a habilidade de realizar entrevistas utilizando-se de seus conhecimentos técnicos e até mesmo intuitivos para uma boa realização da anamnese psicopatológica. Tal fato é de extrema importância, pois dificuldades relacionadas aos limites do paciente e até mesmo à ética do profissional devem ser contornadas para proteger o contexto da entrevista. A paciência e a experiência do profissional também são grandes influências que qualificam a entrevista, retirando delas o máximo de conhecimento possível.
Para Dalgalarrondo,
“o profissional, ao entrar em contato com cada novo paciente, deve preparar o seu espírito para encarar o desafio para conhecer esta pessoa, formular um diagnóstico, entender, quando possível, algo que se passa no interior desse indivíduo.” (DALGALARRONDO, p.52)

A anamnese psicopatológica difere da anamnese psiquiátrica principalmente quanto ao enfoque. Exames físicos, neurológicos e complementares são solicitados pelo psiquiatra, que objetiva o encontro da “queixa principal”. Muitas vezes, estes profissionais necessitam da ajuda de parentes do paciente, que se recusa (às vezes defensivamente) a apresentar sua queixa. Um outro ponto diferencial está na veracidade dos fatos. O psiquiatra necessita de informações verdadeiras e confiáveis para dar continuidade à seu tratamento. Já o psicólogo confia na fala do paciente: o que ele traz, o que diz e aponta. A escuta é valorizada e, aos poucos, o paciente toma conhecimento do que diz (através da pergunta: “che vuoi” – o que você quer dizer com isso?) e encontra sua “queixa”. A clínica do olhar e da escuta se opõem e se conflituam quanto à seus objetivos.
A clínica do olhar reduziu o conhecimento científico àquilo que é observável. A soberania do olhar proporcionou aos pacientes se limitarem em dizer àquilo que o observador quer ouvir. Seus seguidores desconsideram a importância do “ouvir” e oferecem resposta imediatistas, onde Freud caracteriza-os de “trapaceiros que dão mais do que possuem”. Para Montezuma,
“O paciente que mensalmente apanha sua receita com um psiquiatra que mal o convida para sentar vive em crise ou estabilizado em uma posição em que aparentemente não sofre, mas também não existe como sujeito” (in Quinet, p.141).

Encarar o paciente como sujeito composto por subjetividades particulares não é habito da clínica do olhar. Este modelo supervaloriza a sintomatologia e seu tratamento medicamentoso.
Já a clínica da escuta valoriza o “caso a caso”, privilegiando a singularidade de cada sujeito. Ouvir o paciente e sua queixa são fundamentais para este modelo. Sendo assim, a fala do sujeito deve ser privilegiada de forma a levá-lo à pensar na sua implicação e sua participação nos sintomas para que possa descobrir outros caminhos para seguir a vida sem dificuldades. Inclusive, a inserção social pode ser facilitada pela clínica da escuta de forma que o sujeito possa reconhecer seus limites e tomar providências preventivas, e não extremistas como na internação. Além disso, uma escuta ativa por parte do profissional permite encarar o paciente como ser multifacetado e não como números referentes às patologias (CID 10 ou DSM IV). É justamente esta escuta que permite um entendimento mais abrangente da enfermidade e do seu tratamento.
Visualizar o paciente como um sujeito sensível não só à sua patologia, mas também à cultura, à sua história, ao ambiente e à psique é justamente a proposta do modelo biopsicossocial, proposto por George Engel: enfoque sistêmico integrado para o comportamento e a doença. Este modelo provém da teoria geral do sistema, subdividido em sistema biológico, social e psicológico. Como os nomes sugerem, o sistema biológico enfatiza o substrato anatômico do organismo; o sistema social tem seu enfoque no ambiente atrelado à cultura e à família; e o sistema psicológico salienta os fatores psicodinâmicos, motivação e personalidade e seus impactos na patologia do paciente.
O modelo biopsicossocial tem como componente de extrema importância o relacionamento médico-paciente. O médico, assim como qualquer outro profissional da saúde, deve estar ciente não apenas do estado clínico do paciente, mas também do estado psicológico e do meio sócio-cultural em que este indivíduo está inserido. Existem vários modelos que caracterizam esta relação médico-paciente que derivam tanto da influência da personalidade, expectativas e necessidades do médico quanto do paciente. Quando estes fatores do médico e do paciente são bastante divergentes, pode ocorrer decepções devido à interpretações errôneas de ambos. Para que isto não ocorra, o médico deve estar ciente do modelo com cada paciente e ser capaz de mudá-lo dependendo das necessidades e exigências de cada situação clínica específica.
Independente do modelo de relacionamento médico-paciente utilizado é preciso que outros fatores sejam considerados. O médico deve ser empático, compreender a si mesmo e até mesmo defensivo em alguns casos. Quando o paciente percebe o interesse, o entusiasmo do seu profissional, ele se mostra mais flexível e tolerante até mesmo à inexperiência do médico.



DALGALARRONO, P., Psicopatologia e Semiologia dos Transtornos Mentais, Porto Alegre: Artes Médicas Ed., 2000.

MONTEZUMA, M.A. A clínica na saúde mental. in: Quinet, A. (org.). Psicanálise e Psiquiatria. Rio de Janeiro: Rios Ambiosos Ed., 2001.

QUINET, A. In: Pesquisa em Psicopatologia Fundamental. Texto: A apresentação de pacientes de Charcot a Lacan, São Paulo: Escuta Ed., 2002.

Um comentário: